A Visão do Vazio

Acima de tudo, foi um anônimo. Uma espécie de espírito que pairou sobre o mundo e cuja incognoscível presença podemos apenas intuir, mas não compreender.

Não possuía título de eleitor, nem carteira de identidade, nem certidão de nascimento, tampouco outro documento civil qualquer. Embora, como filho de boa família católica, fosse batizado, também não seria possível encontrar registro sacramental da sua vinda à Terra.

Seu batismo foi daqueles feitos às pressas, logo após um parto complicadíssimo, por medo de que o frágil bebê morresse sem a devida libertação do pecado. João, o pai do recém-nascido, ao ver o minúsculo corpinho que a exausta esposa parira, pôs-se a correr desesperado até a capela da comunidade e conseguiu que o Padre Arcanjo, um velhinho que fazia jus ao nome que assinava, acompanhasse-o até em casa e assegurasse a regeneração do pequeno pela água na Palavra. Foi a última missão espiritual do bom Arcanjo. Momentos depois, durante o regresso ao seu retiro, o amável religioso, enfermo há anos, apesar de ainda ativo como eclesiástico, transcendeu esta vida. Um dia deveras triste. Mas sofrimentos maiores estavam por vir.

Seu Tacanho, o maior proprietário de terras local e único que dispunha de meios para chegar à cidade em tempo hábil de providenciar um funeral digno ao venerado sacerdote, com a presença de um ministro da Igreja, sumira enigmaticamente pouco antes de que os preparativos para o velório do bom Arcanjo fossem iniciados.

Os comiserados habitantes do lugarejo clamaram durante três longos e angustiantes dias pelo retorno do aguardado homem. Porém, nesse período, não encontraram alma viva alguma na residência do casal Tacanho. Então, ao final do terceiro dia, os moradores do povoado, já mais abatidos do que tementes e piedosos, optaram por enterrar o corpo do sacerdote sem o justo e necessário cerimonial pelo seu espírito.

Assim, a pequena localidade rural isolada, onde não havia escolas, nem hospitais, nem energia elétrica, nem água encanada, nem nada, composta apenas por quarenta habitantes, distribuídos em sete famílias, incluindo a família de João e o sacerdote, ficou também com sua terna capelinha vazia, privada da digna presença de um representante ordenado.

Desse modo, a inocente criança, nascida em um dia desgraçado, jamais fora incorporada aos documentos oficiais da Santa Igreja. Detalhe que João desconhecia, pois nada compreendia acerca das formalidades dos homens. Aliás, sequer sabia ler. Muito menos os outros moradores locais, excetuando-se Seu Tacanho e o falecido religioso, conheciam alguma coisa sobre o mundo e suas letras.

No decorrer dos seis anos seguintes, aquela comunidade esquecida, e João mais do que todos, rogava com insistência a Seu Tacanho para que intercedesse junto à Igreja Matriz da Diocese – nome ouvido do Padre Arcanjo, mas cujo significado, em verdade, ninguém dentre eles entendia – e solicitasse que outro pároco fosse designado para atendê-los. Em resposta, Seu Tacanho sempre prometia a João, e “a todos que tivessem ouvidos para ouvir”, que faria tudo ao alcance – “até mesmo de minhas posses” – para que a comunidade não se esquecesse dos “verdadeiros valores da sacrossanta Igreja”, acrescentando em tom de mistério: “Mas nunca se sabe… Quem poderia prever que Deus chamaria o velho Arcanjo bem na hora em que minha mulher e eu tínhamos viajado a negócios? Vejam só! Por isso é que existe o conhecido ditado: Deus escreve certo por linhas tortas…”.

Seu Tacanho, em suas idas à cidade, nunca passou perto da Igreja Matriz. Tampouco entrou em alguma igreja qualquer ou buscou se inteirar acerca dos procedimentos adequados nesses casos. Sequer comunicou o falecimento do padre a alguém da cidade. E o povoado permaneceu sem missas. Ademais, provavelmente o pedido daqueles camponeses não seria atendido. Afinal, agora só havia trinta e nove habitantes no local e nenhum padre ambicionaria se deslocar até ponto de tão difícil acesso para celebrar as graças de Deus com um punhado de cristãos que, de qualquer forma, continuariam fiéis; menos ainda viver em tal fim de mundo, o qual nem constava nos mapas oficiais e registros do clero. O velho Arcanjo era mesmo um santo! Uma dessas almas que – de tão boas – talvez não devesse ser lembrada.

A ausência de elo do povoado com o mundo espiritual, representado na figura do sacerdote, foi um golpe fatal no coração daquela gente. Para confirmar a desgraça, ano após ano, fortes secas assolavam a região. Onde antes se gerava uma boa cultura de subsistência e até relações de escambo, com a troca do pequeno excedente colhido por certos insumos ou alguma roupa (mercadorias trazidas da cidade por Seu Tacanho), agora se encerrava um lugarejo decadente e miserável.

Tudo estava saindo melhor do que Seu Tacanho – cujos planos eram tão impenetráveis ao olhar simplório daquele povo quanto os desígnios de Deus são estranhos a um humilde mortal – jamais sonhara. Basta dizer que, desde sempre, enquanto os demais semeavam a terra, ele cultivava o desejo de tomar todos aqueles domínios para si. As famílias possuíam propriedades vastas, porém, em grande parte, cobertas por mato; coisa que Seu Tacanho não conseguia aprovar. “Quanto desperdício”, lamentava-se. Ele não era um homem de espírito estreito como muitos dos seus amigos da cidade pensavam. “Não me conhecem”, refletia, “tenho muito espírito e um dia, com a graça de Deus, ainda serei chamado de latifundiário”.

Prova viva de o quão justa era a sua espiritualidade, Seu Tacanho logo observaria à sua volta. Família após família, pouco a pouco, todos abandonariam a região. Sem comida, sem perspectiva e sem padre, nada restava àquele povo, afora, cedo ou tarde, vender as terras para Seu Tacanho a preços baixíssimos e partir rumo à cidade.

A maioria, e João principalmente, dizia que a tragédia que assolava o povoado era um castigo divino. Como podiam viver sem Igreja? “Por isso Deus não está mandando crianças. Vejam a mulher do Seu Tacanho! Ela tem de tudo, mas não consegue dar à luz”, afirmavam, e completavam com tristeza: “e os nossos inocentes que nascem não aguentam. Só neste ano já se foram três coitadinhos… mal haviam chegado ao mundo… Não está certo, não está certo, meu Deus!”. Nem mesmo as devotas novenas que as mulheres organizavam surtiam efeito. “Não é a mesma coisa se não se reza nunca a Santa Missa”, elas lamuriavam. Quaisquer acontecimentos catastróficos que se abatessem sobre a região, aos olhos daquelas famílias, certamente se deviam ao despertar de alguma força oculta, desencadeada após a morte do bom Arcanjo. Desde aquele dia fatídico, o vigor desses camponeses, outrora tão perseverantes, secara mais do que a falta de chuva tornara árido o campo.

João não conseguia conter as lágrimas diante da visão da sua querida capelinha vazia, silenciosa, como se o espírito do templo houvesse partido deste mundo em companhia ao velho Arcanjo. Movido por uma espécie de desespero esperançoso, esmerava-se em cuidar da sua igrejinha, a fim de impedir que o capim e a sujeira a possuíssem antes da vinda de um novo padre. O que mais poderia fazer? Pensou em organizar um culto. Em alguns momentos foi instigado por ímpetos heroicos e, como um profeta, tencionava conduzir o seu povo de volta à vida sagrada e próspera. Não podia mais ficar de braços cruzados assistindo ao horror da morte dos filhos dos seus compadres, cujas vidas recém-nascidas murchavam como as plantações. Tinha de tomar uma atitude diante desse mundo que parecia gerar novas existências apenas para, com mais perversidade, deleitar-se no espetáculo do perecimento.

Nessas horas, uma torrente de sentimentos invadia o seu organismo. Sentia-se um afortunado por seu pequeno estar a salvo, crescendo sadio, apesar do nascimento difícil. Então, uma culpa terrível, uma sensação paralisante colocava em transe a sua cabeça, acelerava o seu coração e descia pelo seu corpo até entre as pernas, retraindo sua musculatura a ponto de João mal conseguir se mover. Ele, que nem capaz fora de conseguir uma cerimônia fúnebre para o santo Arcanjo, seria merecedor de se imaginar aquele que ministraria cultos como se fosse um salvador? Mil vezes desgraçado se considerava! Logo sua coragem messiânica lhe parecia o mais abominável dos pensamentos e a aterradora paralisia se consolidava. Nada mais conseguia fazer.

Essas crises foram se tornando mais frequentes. Quando se recompunha o suficiente para falar, chamava inquieto pelo filho (já um meninote milagrosamente robusto, cabelos ruivos e belos olhos verdes de esperança) e discursava longamente sobre como Deus agraciara o pequenino, cobrindo-o de benevolência. Apenas após proferir esses sermões sentia seus nervos aliviados o bastante para liberar o corpo do tolhimento.

Enquanto João ansiava pelo impossível, Seu Tacanho, com a despreocupação própria de quem se crê predestinado ao sucesso, fazia tudo ao alcance de suas possibilidades para tornar o cenário ainda mais desolador. À medida que se apoderava das terras, mandava derrubar as casas e todas as demais construções das propriedades, para reutilizar o material em outras obras mais úteis ou, em certos casos, apenas para aproveitar a madeira que fosse adequada para lenha. No fim do sexto ano sem o Padre Arcanjo, a família de João era a única que persistia na localidade.

Em meio a essa vida apocalíptica, a esposa de João contrai rubéola, ou sarampo, ou varicela; talvez todas essas enfermidades. Não se sabe. O que é passível de conjeturar é que a moléstia fora transmitida pelo afilhado de Seu Tacanho, pois o menino convalescia de alguma dessas doenças quando a camponesa passara na residência do próspero proprietário rural, onde intentava trocar alguns quilos de aipim por leite para o filho (Seu Tacanho, já há três anos, era o único em toda a região que ainda tinha condições de criar gado).

Doente, desnutrida, debilitada, porém ainda insistindo em realizar os serviços domésticos e em ajudar João no campo, a esposa do atormentado agricultor acaba por falecer, delirante de febre, em meio, justamente, de sua derradeira esperança: seus pés de mandioca.

João, diante do cadáver da mulher fincado entre as raízes tuberosas, não conseguiu ação outra senão também desabar estancado naquela terra, desejando ali permanecer estirado pela eternidade. Entretanto, ainda não era sua hora de adentrar o além-mundo. Acordado pelo seu filho assustado, conseguiu reunir forças, não se sabe de onde, para enterrar sua esposa no cemitério local.

Desse momento em diante, João ficou inteiramente possuído por tormentos que assolavam sua vida interior. A sua fé hesitava como nunca. A convicção de que queimaria no inferno, prestando contas ao diabo pelos seis anos em que não via um padre, quanto menos comungava ou se confessava, cresceu de tal forma que não mais paralisava apenas o seu corpo: subjugava todo o seu ser. A lembrança de que havia enterrado a mulher como a um animal, sem cerimônia alguma, em presença apenas dele e do seu pobre filhinho confuso e choroso, inflamava ainda mais o incêndio moral no qual João ardia. Mal podia dormir e, quando o fazia, pesadelos mórbidos arrombavam seu sono. Repentinamente começou a olhar para as cordas do seu galpão com uma volúpia até então nunca sentida. Contemplava as curvas das amarras que envolviam as madeiras, fazia laços, acariciava sua textura, testava sua rigidez, escorregava com leveza o excitante material esfiapado sobre seu pescoço… Por fim, resignado, abandonava a ideia.

Talvez tivesse cedido à tentação não fosse pelo seu filho, que precisava de intensos cuidados, pois o inocente, não bastasse o desconsolo da saudade da mãe e dos momentos estarrecedores recém-presenciados, estava agora com o corpo tomado de manchas.

João continuava convicto de que merecia a fogueira eterna. Restava salvar a vida e a alma do menino. Durante vários dias, apesar do seu estado de ânimo funesto, acompanhou as febres, feridas, coceiras e choros intermináveis, zelando do melhor jeito que pôde. Momentos penosos, de esforços sanguíneos que só o sofrimento cardíaco de um pai tem o poder de fazer pulsar, exigindo, ante o horror do silêncio perpétuo, o grito da vida. Em face de tamanho amor, até o desespero, tão objetivo em ser vão, sujeitou-se: o garotinho estava a salvo.

Contudo, agora João, então mais esgotado do que nunca, encontrava-se seriamente enfermo.

Sentia a morte se aproximando, porém não queria aceitar. Ainda não podia deixar esta vida. Passou a emitir berros estridentes terríveis durante grande parte do dia. Urros que expressavam – muito além da dilacerante dor orgânica – insuportável agonia moral. Seu filhinho, apavorado, chorava sem parar e as dolorosas indagações se repetiam: “O que foi, pai? O que foi?”. João não respondia. Apenas insistia em afirmar para o filho que eles eram almas puras e nunca conheceriam o fogo ardente do inferno, que rasga a alma dos pecadores como os raios incendeiam o céu.

Após um mês nesse estado, e ainda assim garantindo a subsistência do seu garoto (o qual, por sua vez, há muito sabia cozinhar e como ajudar em algumas tarefas básicas da casa e da lida no campo), João intentou pedir ajuda a Seu Tacanho. Não havia outro recurso possível. Ademais, Seu Tacanho morava a apenas seis quilômetros dali. O mínimo que João tinha de fazer era ir até lá na esperança de conseguir auxílio; quem sabe, inclusive, ser levado a um padre que lhe concedesse a Extrema Unção. Não queria; não podia; não devia morrer assim. Mais importante: imploraria que cuidassem do seu filho após ele, João, deixar esta vida. No entanto, uma fraqueza imobilizante o dominava. E o que aconteceria se falhasse em sua jornada redentora? Como ficaria o seu garoto? Passou dias amputado por esse conflito interno, buscando coragem para assumir a empreitada.

Numa tarde cinzenta, João se debatia, perdido em seu tumulto nervoso, quando percebeu seu filhinho sonolento. Com carinho, pegou-o no colo e o pôs para dormir, sob o reconfortante som da chuva leve que ensaiava seu deslizar suave sobre a casa. Após tanta agitação, observar o pequenino descansando um sono angelical, enrolado nos aconchegantes cobertores, transmitiu-lhe uma tranquilidade de espírito que há muito ele não experimentava.

Seguro de si, João encontrou forças e saiu otimista em direção à morada do grande benfeitor local. Caminhava, com esforço, na pesada rua de terra que logo ficou encharcada pela chuva torrencial em que o chuvisco se transmutara. Ainda estava fisicamente fraco; respiração ofegante. Contudo, desfrutava, como nunca dantes, da beleza do verde vivo, molhado em doce esperança, das árvores que cercavam sua tão conhecida e familiar estradinha. Finalmente Deus mandava chuva numa época boa! Aliviado, João contemplava as mais simples sinuosidades dos terrenos que desenharam o seu mundo durante mais de trinta anos. Talvez houvesse alguma esperança, afinal. Este ano seria melhor! Sentiu-se agraciado, benquisto por Deus, insuflado da sensação de que pela primeira vez compreendia visceralmente o quão magnânimo era o dom da vida.

Enquanto caminhava, reanimado, uma visão nova começou a se desvendar em seu horizonte embaçado pelas pesadas gotas da tempestade. Seria o sino no costado da rua? Não conseguia ver direito. Mas o que ele estaria fazendo ali? Não fazia sentido. Pilhas de tábuas amontoadas…

De repente, uma ausência esmagadora se revelou mais definitiva do que tudo o que até então avistara: a capelinha não estava mais de pé.

E, momentos antes de o coração interromper o fluxo orgânico, a visão do vazio já havia expirado o espírito de João.

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