Este texto foi escrito, sem nenhum motivo formal, em 13 de dezembro de 2006. Deixei-o guardado desde então. Publico-o, agora, especialmente para mostrar o tipo de assunto que me afligia já naquela época. Não realizei alteração alguma no conteúdo, exceto o acréscimo de “imagem do topo”, entre parênteses, atinente ao poema “Viva/Vaia”, do Augusto de Campos.

Má-temática: 50 anos de Concretismo

beba coca cola
babe cola
beba coca
babe cola caco
caco
cola
c l o a c a

“beba coca cola” (1957),
Décio Pignatari

“poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas. dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal)[…]”, início de o “Manifesto concretista”, com seu “Plano Piloto para a Poesia Concreta” publicado na revista “noigrandes” em São Paulo, 1958, assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos.

A revista “Discutindo Literatura” deste mês traz na capa uma manchete que chama a atenção para os 50 anos do concretismo, “o primeiro movimento literário brasileiro com impacto no exterior”.

Após a leitura da matéria uma antiga indagação se reacendeu em mim. Essa, aliás, permeará todo o texto subseqüente, o qual trata de sentimentos íntimos e de opinião pessoal; e não de uma crítica no sentido acadêmico (coisa que, desde já, faço questão de enfatizar). A reflexão é a seguinte: o que o celebrado “poema-objeto” dos concretistas acrescentou à minha existência? Fiz o balanço e me pareceu uma mistura de jogo da velha, geometria plana, Tetris e palavras cruzadas.

Até gosto dessas coisas. Algumas são úteis, outras distraem de forma intelectualmente ativa; entretanto, ainda não tiveram a pretensão de decretar o fim do verso, tampouco de se equipararem, ou até se considerarem superiores, aos grandes nomes da Literatura, como fez Haroldo de Campos ao declarar: “Toda grande poesia é concreta”. Ora, cada coisa no seu lugar.

Nunca fui entusiasta dos concretistas. Acho até interessantes algumas de suas idéias, mas não as encaro como Poesia verdadeira, posto que não me transmitem emoção, nem sensação, alguma. Ademais, não me enriquecem o espírito e, enquanto atividade “racional” (se é que tal termo, tão enaltecido pelos concretistas, é apropriado às suas obras), prefiro a geometria; já que uma comparação com poetas tidos como “cerebrais”, como João Cabral de Mello Neto, seria, no meu entendimento, uma ofensa à massa cinzenta desse.

Recordo-me de, certa vez, ter sentido com muita intensidade o fracasso de uma quimera, a qual, na época, eu julgava definitiva. Ainda lembro até da rua em que os versos de Augusto dos Anjos, espontaneamente, vieram à minha mente:

“Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!”

Por outro lado, duvido que alguma criatura no mundo já tenha visualizado o “Viva/Vaia” (imagem do topo) de Augusto de Campos num momento de decepção, ou em outro momento qualquer da vida que possa parecer mais pertinente à semântica dessa obra, com a sua contraposição entre o “viva!” e a “vaia”. Esse “poema-objeto” sequer vaia o espetáculo vivo da vida, ou é vaiado por ela, à altura de “A Última quimera”. Augusto dos Anjos pode ser vivenciado nas entranhas, tornando-nos os atores da projeção, da quimera, do “viva!”; seguida da contraposição, a pantera, da vaia!

“A intenção era revolucionar a forma!”, protestarão os defensores do concretismo. Tudo bem, mas renovar a forma para dizer o quê?  Acaso a geometria e as cores brancas e vermelhas do “Viva/Vaia” constituem uma pintura excelente? Na minha opinião, tem valor apenas como uma espécie de trocadilho publicitário, transmitindo a idéia de maneira chamativa, mas não poética. Conheço muitas pilhérias criativas e que nem por isso podem ser chamadas de poesia. Como disse Drummond: “Esse negócio de poesia concreta é bobagem”.

Por vezes penso que há coisas originais, como o projeto concretista de terminar com o verso, que ninguém havia tentado antes somente pela razão ululante de serem muito estúpidas e não por mero “conservadorismo burguês”, o qual estaria empenhado, de acordo com os concretistas, em uma espécie de conspiração capitalista pró-verso. Outro exemplo? Que tal a proposição de Haroldo de Campos, que nunca chegou a se concretizar, de um poema elaborado com base em equações matemáticas? Parece-me que seria mais fácil, respondendo à moda concretista, simplesmente acrescentar um acento e separar uma sílaba para deduzir no que resultaria: “má-temática”.

Aliás, pelo que me consta os concretistas nem foram assim tão originais, apenas extrapolaram na poesia conceitos que já estavam no ar desde, no mínimo, 1930, ano em que Van Doesburg redigiu o manifesto de Arte Concreta, contendo idéiais como a da abstração geométrica e demais princípios do concretismo que visam a afastar da arte qualquer simbolismo ou lirismo.

A seguir farei mais uma comparação, que pode ser inapropriada na concepção dos mais rígidos; mas cujo contraste de abordagem em relação ao tema, e a diferença de valor num momento em que é de derradeira importância (num “teste de fogo”), não me sai da cabeça. Assim, cito, primeiramente, Álvarez de Azevedo, que escreveu:

“Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz! e escrevam nela:
— Foi poeta, sonhou e amou na vida.”

E, por sua vez, Haroldo de Campos:

“Se se nasce morre nasce morre nasce morre renasce remorre
renasce remorre renasce remorre re re desnasce desmorre
desnasce desmorre desnasce desmorre nascemorrenasce
morrenasce morre se”

Não posso dizer que mencionei o “poema” de Haroldo de Campos, pois a transcrição não abarca a obra em si, já que, ao trazê-la para cá não consegui manter a forma visual construída pelo seu autor [1], a qual, supostamente, justificaria a existência de tal escrito. E qual é o “teste de fogo”, ao qual me referi? Ora, o momento da própria morte e a reflexão sobre a vida que se foi. Penso que obras que abordam o tema do viver e da morte, do modo como encontramos em “Se nasce/morre”, não são apropriadas, ao contrário do que ocorre com o brilhante soneto de Álvarez de Azevedo, para a lápide de quem quer que tenha apenas nascido e morrido na vida. Nem é necessário ter amado, sonhado, ou sido poeta, para merecer uma mensagem póstuma com mais significado. Forma nessas horas? Basta a do caixão.

Reconheço as influências que os concretistas tiveram sobre outros autores (Paulo Leminsky, por exemplo) como algo de certo valor, mas nada de extraordinário. Inclusive, o meu poema concretista favorito, intitulado “Epitáfio para um banqueiro”, não é de um dos concretistas tradicionais. Talvez por isso foi capaz de me causar uma impressão duradoura, já que o seu o autor, o paulista José Paulo Paes (1926-1998), não tinha uma identificação total com os irmãos Campos e com Décio Pignatari; apenas incorporou algumas de suas idéias, mas agregando algum conteúdo, o que no meu entendimento é imprescindível.

Epitáfio para um banqueiro

negócio
ego
ócio
cio
0

No final das contas (expressão muito apropriada, aliás, para a vida de um banqueiro), após a correria dos negócios, por ego, ócio e cio, só restou o vazio, o nada. Penso que o mesmo resta em nós após ler o trabalho de algum dos autores da tríplice concretista (os já mencionados irmãos Campos e Décio Pignatari). Nessa perspectiva, compus um poetrix (lembrando que critico mais fortemente o concretismo em si e o tom adotado pelos seus militantes; não algumas de suas idéias e subseqüentes influências, tais quais o próprio poetrix) em “homenagem” aos concretistas, que aproveito para citar:

Do negócio

dos concretistas, de tanto ego
e tanto ócio, sobrou muito
0

Para fechar esse escrito faço um contraponto: alguém que tenha lido o texto bebendo Coca-cola possivelmente esteja, neste momento, descobrindo alguma relação do “Cloaca” com a vida. A poesia concretista, que propunha o fim do eu-poético, guardou, afinal, algo da perenidade do “eu-humano”; ainda que seja o eterno da latrina.

[1] Nota: http://www.jornaldepoesia.jor.br/hi02.html

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