Prefácio

Por predileção, não sou entusiasta de prefácios. Pode ser idealismo meu, porém acredito que o conteúdo deve bastar, sobretudo em literatura ficcional.

Mas, já que estamos em um prefácio, começo pedindo ao leitor que me conceda a sua boa vontade, ainda que eu não seja alguém de prestígio.

Nunca simpatizei com “best-sellers” cujo nome do autor vem acompanhado de “Ph.D.” ou “M.D.”. Podem até ser bons livros, entretanto, ainda que o autor seja um “M.D.”, na maior parte dos casos o valor do que ele diz não guarda um vínculo tão forte com a sua formação médica quanto ele quer aparentar. De igual modo, há inúmeras obras bastante rasas que ostentam o carimbo “Ph.D.”, sem o qual talvez não fossem lidas tão a sério.

Todos nós, por natureza, temos de fazer um considerável esforço para transcender as nossas projeções pessoais. E, nesse aspecto, acredito que o apego a informações prévias sobre o autor só dificulta o processo, piorando os preconceitos já existentes; por conseguinte, embotando uma das principais funções da ficção, que é a de ampliar os nossos horizontes.

Eu próprio, que aqui estou comentando sobre isso, verifico esse comportamento em mim. Mais de uma vez assisti a filmes até o fim apenas porque, desde o início, já sabia quem era o diretor. Caso os tivesse encontrado ao acaso, em algum canal de T.V, dificilmente teria continuado a vê-los de bom grado.

Sem dúvida a maioria dos grandes nomes faz jus ao seu lugar e é justo que lhes seja concedida maior benevolência, mesmo que não apreciemos alguma de suas obras. O problema é que esse comportamento ocorre com igual intensidade às avessas, impedindo-nos de olhar com bons olhos quem não possui grife. É conhecido o exemplo de Jonh Michael Crichton, que recebeu um “B” no curso de Letras de Harvard após entregar um texto de George Orwell como se fosse seu. É certo que qualquer um, mesmo Orwell, poderia ter escrito um trabalho que não merecesse mais do que um conceito “B”, mas ainda mais certo é que o docente, se soubesse quem era o verdadeiro autor, jamais teria avaliado o trabalho com a mesma severidade.

Nesse aspecto, voltando ao ideal da prevalência do conteúdo, gosto muito deste trecho de uma carta de Guy de Maupassant a respeito de Flaubert:

Flaubert é antes de tudo um artista, isto é, um autor impessoal. Eu desafiaria quem quer que fosse, depois de ter lido suas obras, a adivinhar o que ele é na vida particular, o que pensa e o que diz em suas conversas de cada dia. […] Flaubert jamais escreveu a palavra eu. Ele nunca vem conversar em público no meio de um livro, ou saudar esse público no final, como um ator no palco; e não escreve prefácios. É o apresentador de marionetes humanas que devem falar por sua boca, enquanto ele não se dá o direito de pensar por elas; e é preciso que não se percebam os cordões ou se reconheça a voz. […] Os jornalistas não conhecem seu rosto. Ele acha que é o bastante publicar seus escritos, e sempre manteve sua pessoa bem afastada da popularidade, desdenhando a publicidade ruidosa dos panfletos, as propagandas oficiosas e as exibições de fotografias nas vitrinas de tabacarias, ao lado de um criminoso famoso, de um príncipe qualquer e de uma jovem célebre.

Em convergência com o que venho tentando expor aqui sem muito sucesso (sim, pois, ao contrário de Flaubert, já escrevi “eu” e, pior, “eu próprio”), Nietzsche escreveu:

[…] dirige-se ao leitor a […] a mais importante exigência: a de que não se intrometa de modo algum, à maneira do homem moderno, e não traga para a leitura a sua formação, algo como uma medida, como se com isso possuísse um critério para todas as coisas.

É preciso um delicado equilíbrio entre possuir uma compreensão ampliada, em virtude de uma vasta formação, sem transformar essa bagagem em um peso morto, em quinquilharias que arrastamos para uma viagem como estorvos a carregar.

Para ilustrar de modo conciso e muito simplificado, ao ler a expressão “bom ladrão”, um católico fervoroso pode ter dificuldades em se desvencilhar da associação que faz com São Dimas, especialmente se souber que o escritor é também um católico. Porém, o “bom ladrão” da história pode ser simplesmente o melhor ladrão de uma gangue: “Dimas é o bom ladrão”. O autor, é claro, pensando em um público-alvo específico, pode jogar com essa expectativa, no entanto, independentemente disso, o fenômeno de nos afixarmos a uma leitura preconcebida existe. A questão, por conseguinte, é manter uma abertura para a obra antes de lhe impormos o que somos, atitude que tomamos, invariavelmente, devido a hábitos adquiridos pela formação cultural.

Aqui, talvez, chegamos ao momento de alçar um voo maior, concedendo alguma atenção ao narrador. Figura, essa, que não necessariamente se confunde com o autor, conforme observou Terry Eagleton, em seu livro “Como ler literatura”:

Os narradores oniscientes são vozes sem corpo, e não personagens específicos. À sua maneira anônima e inidentificável, agem como a mente da própria obra. Apesar disso, não devemos supor que eles expressam os pensamentos e sentimentos do autor real. Já vimos um exemplo disso nas linhas iniciais de “Uma passagem para a Índia”, de E.M. Forster, que são enunciadas por um narrador onisciente, mas que registram atitudes que poderiam ser ou não as de Forster. […] “O arado e as estrelas”, peça de Sean O’Casey, troça impiedosamente de um personagem chamado Covey, que vive despejando um palavrório marxista e insiste que a luta do proletariado deve ter precedência sobre a libertação nacional. Mas o próprio O’Casey era marxista e acreditava exatamente no que Covey prega. “Um retrato do artista quando jovem”, de Joyce, termina com o protagonista elaborando um longo e erudito arrazoado sobre estética, com pontos que, sabemos com bastante certeza, Joyce não aceitava. Mas o romance não nos diz isso.

Apesar do que diz o renomado crítico, há muitos autores panfletários, não o nego. Contudo, garanto que os meus esforços não foram nessa direção. Aliás, em sintonia com os apontamentos de Terry Eagleton, basta dizer que, neste romance, em inúmeros momentos a voz do narrador se confunde com a dos personagens, inclusive assumindo os seus erros de percepção em algumas situações.

Da mesma forma que o narrador se deixou levar pela história, conto com a docilidade do leitor, de maneira a permitir que o livro fale, em vez de nele introduzir os discursos nossos de cada dia previamente encenados.

Começamos com o pedido de benevolência para um autor sem prestígio, relacionado ao ideal do predomínio do conteúdo. Em seguida, cultivamos a esperança de uma apreciação dócil da história, num “cessar fogo” da formação do leitor, em espírito de paz semelhante ao do narrador onisciente desarmado, não impositivo. Agora, retomemos problema do autor propriamente dito.

De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito. Não é fácil compreender o sangue alheio […]

Assim falou o Zaratustra de Nietszche e, invocando essas palavras, tento explicar o porquê peço que me seja concedido o direito de ser lido com atenção. “Vida incerta em linhas tortas” é um livro cujos “flashs” iniciais fermentaram na minha mente por vários anos antes de considerá-lo digno de ser materializado. Mesmo assim, revisei-o incontáveis vezes, durante um número ainda maior de anos, em silêncio, concluindo-o muito tempo depois e o avaliando como algo que vale ser lido apenas em setembro de 2019, quando da sua publicação.

Logo, não sou um desses autores levianos que esperam do leitor uma atenção que eles próprios não dedicaram à tessitura da obra. Posso assegurar que não há imprecisões lógicas na trama. Pode haver situações que causem estranheza ou aspectos demasiado sutis para serem captados numa primeira leitura, contudo, cada passo foi calculado. A história se passa num intervalo de 45 anos e, se alguns personagens perdem importância, é porque também as pessoas perdem importância, ou mesmo somem, nas nossas vidas. O cosmo em que habitam é vivo e, nesse sentido, estranho e real como o mundo.

De maneira similar, diz o narrador de “Insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera:

Essa composição simétrica, onde o mesmo motivo aparece no começo e no fim, pode parecer até “romântica”. Admito que seja, mas somente com a condição de que romântico não signifique para você uma coisa “inventada”, “artificial”, “sem semelhança com a vida”. Porque é assim mesmo que é composta a vida humana.

E, mais adiante, no mesmo livro:

Mas não se diz sempre que o autor só pode falar de si mesmo? […] eu próprio conheci e vivi todas essas situações; de nenhuma delas, no entanto, saiu o personagem que sou, eu mesmo, no meu “curriculum vitae”. Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los todos e temê-los ao mesmo tempo. Uns e outros atravessaram a fronteira que apenas me limitei a contornar. O que mais me atrai é essa fronteira que eles ultrapassaram (fronteira para além da qual termina o meu eu). Do outro lado começa o mistério que o meu romance interroga. O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se transformou o mundo. Chega! Voltemos a Tomas.

Sim, voltemos a Tomas, pois, para alguém que não aprecia prefácios, já me alonguei demais. E isso se deve a Tomás, não o de Kundera, mas o de Aquino. É que, na introdução da sua obra em comentário à “Sobre a alma”, de Aristóteles, Tomás de Aquino afirma que ao escrever um prefácio o autor deve buscar três coisas: ganhar a benevolência, conquistar a docilidade e, por fim, prender a atenção do leitor.

Espero tê-lo conseguido. De todo o modo, se o poeta atinge o ápice na sua poesia e não consegue se manter em tão elevadas alturas nas suas expressões cotidianas, o romancista deposita a sua maior riqueza na ficção; sua pessoa, comparada ao seu trabalho, longe de ser um credor, é alguém que fica lhe devendo. Portanto, deixemos o livro falar.

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